Senhor, também quero ser um “João”!

‘Biografia de João Ferreira de Almeida’

No ano de 1628, na cidadezinha de Torre Tavares, no distrito de Visen em Portugal nasceu uma criança a quem seus pais puseram o nome de João. Mais um João no mundo! Logo lembramos de João Batista, o que tivera a sua cabeça entregue para a filha de Herodias. João Marcos, o desertor da missão em que Barnabé e Paulo eram os responsáveis, a quem depois, o apóstolo o considerou útil. João, o apóstolo amado, que quando velho recebeu uma revelação (Apocalipse) na ilha de Patmos. Para não falar de outros “Joões”… João Wycliffe, João Hus, João Calvino, João Knox e João Wesley.

Ainda cedo, João perdeu os seus pais, ficando órfão. Pela providência divina o seu Tio, que era também padre, o levou para a capital de Portugal, Lisboa, onde aprendeu latim e as normas da Igreja.

Quando adolescente foi para a Holanda e de lá para a Batávia (atual Jacarta, na Indonésia). Com 14 anos, talvez movido pela cultura desbravadora e aventureira dos lusitanos, partiu de Batávia para Málaca. Nessa viagem foi pego de surpresa por um punhado de papéis com palavras em espanhol que caíram em seu coração – terra preparada por Deus. Ali mesmo tornou-se nova criação divina. Esse folheto tinha nas primeiras palavras que compunham o seu título: Differença D’a Christandade entre a antiga doutrina e a nova… Deus havia escolhido esse jovem soldado para uma obra grandiosa e fascinante.

Aos 16 anos, movido pelo seu amor a Deus, e pela necessidade dos luso-indonésios (de língua portuguesa), iniciou a tradução dos Evangelhos e Atos dos Apóstolos do Latim (Vulgata) para o português, com o auxílio das traduções da Bíblia de Lutero (em alemão) e das traduções em francês, italiano e espanhol – obra terminada em um ano.

Não vivia somente debruçado sobre suas traduções, com os dedos enegrecidos pelas tintas. Ele também costumava curvar-se ao lado dos leitos dos hospitais e das casas onde havia doentes, confortando-os. Ao lado dos enfermos, orava, lia passagens da Bíblia, além de cantar salmos. Pela necessidade do seu trabalho, traduziu o catecismo de Heildeberg e o livro de Liturgia – obra que só foi impressa em 1656.

Generoso, em 1650, traduziu o mesmo folheto que Deus usara para transformar a sua vida, para sua língua materna e anos mais tarde para o holandês, com o propósito de que outros também fossem alcançados pela graça de Deus. A essa altura estava casado (com a filha de um pastor holandês) e também já era diácono da Igreja (desde 1649), responsável pela administração do “fundo aos pobres”.

No ano seguinte retornou a Batávia, onde continuou com seu trabalho de consolação, e com os estudos em teologia e em Novo Testamento.

No dia 17 de março de 1654, teve a oportunidade de pregar para o presbitério da Igreja Calvinista da Batávia, o que fez fundamentado na epístola de Paulo aos Romanos, capítulo 10, verso 4 (“Porque o fim da lei é Cristo, para justiça de todo aquele que crê”). E em setembro do ano seguinte fez o seu exame final, expondo a passagem de outra epístola paulina – Tito 2.11-12: “Porquanto a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens, educando-nos para que, renegadas a impiedade e as paixões mundanas, vivamos, no presente século, sensata, justa e piedosamente.” Em 22 de agosto de 1656 foi ordenado, e um mês depois enviaram-no como pastor e missionário para o Ceilão, atual Sri Lanka, juntamente com o seu colega Baldeo.

Do Ceilão foi a Gale, onde ficou pouco tempo. Em seguida partiu para Colombo, onde ficaria por três anos. Nessa viagem, a sua esposa foi miraculosamente salva de um ataque de elefante.

Após o seu tempo em Colombo, foi trabalhar na Índia e de lá retornou a Batávia aos 35 anos. Nesse período, insatisfeito com a tradução que fizera do Novo Testamento, recomeçou o seu trabalho, só que desta vez com um desafio maior: traduzir o Antigo e Novo Testamentos a partir das línguas originais (hebraico e grego).

Em 1668, aos 40 anos portanto, concluiu a tradução do Novo Testamento, mas o Antigo, por ser maior, não tinha um prognóstico claro de quando acabaria.

Era um grande empreendedor, sem esquecer dos doentes. Lutou para que os pobres que recebiam auxílio do “fundo aos pobres” tivessem acesso às aulas de catequese, lutou para que as comunidades evangélicas portuguesas permanecessem unidas e para que tivessem livros em sua língua – traduziu as Fábulas de Esopo, epístolas doutrinárias e outras obras para escolas. Também escrevia cartas para várias pessoas com o propósito de convencê-las a abandonar o romanismo. Eram elas: João Correia de Mesquita (Cavaleiro da Ordem de Cristo), Frei Manoel de Santa Tereza (Ordem dos Pregadores) e João Baptista Maldonado (jesuíta). Mesmo sendo o período que o escravismo dava muito lucro, consagrou ministros negros.

Um homem com tanto serviço prestado a comunidade evangélica, aos 50 anos teve o seu nome manchado, pois havia rumores de que ele estava retornando ao romanismo. Mas tudo foi esclarecido por ele mesmo diante do Consistório (ou Presbitério).

Com sua saúde debilitada, recebeu (em 1682) permissão para dedicar-se mais a tradução do Antigo Testamento, deixando o trabalho na congregação. Foi, então, substituído pelo Pastor, judeu convertido, Jacobus Opden Akker, que estava no Ceilão.

Sete anos depois deram-lhe o título de pastor emérito. Fraco, tomado pela velhice, neste mesmo ano, pediu a sua jubilação. Vindo a falecer em Batávia, dois anos depois (em 06 de agosto de 1691), aos 63 anos. A igreja que pastoreou tinha um belo templo e chegou a ter, no final do século XVII, quatro mil membros.

Foi Jacobus Opden Akker quem terminou a tradução a partir de Ezequiel 48.21, texto que trata sobre a herança do príncipe.

Como príncipe, João Ferreira de Almeida, fez uma obra majestosa: a 32ª versão mundial integral da Bíblia, a primeira para o português – uma das melhores traduções do mundo. Este príncipe foi também o primeiro missionário protestante na Índia, mesmo antes de William Carey.

A sua tradução foi editada pela Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira (em 1809) e chegou ao Brasil a partir de 1818, trazida pelos colportores e capitães de navios ingleses, mesmo antes dos primeiros missionários, o batista Robert Reid Kalley e o presbiteriano Ashbel Green Simonton.

Agradecemos a Deus por termos a tradução de João Ferreira de Almeida já em sua segunda edição, e também a Bíblia na Linguagem de Hoje, a Bíblia Viva (que é uma paráfrase), a Nova Versão Internacional e tantas outras. Contudo, em nosso solo tupiniquim, há povos que ainda não têm nem sequer uma pequena porção da Bíblia, nem aquele folheto que Almeida leu, em sua própria língua. São mais de 100 grupos étnicos que nada sabem do seu estado de morte, nem do amor e da graça salvadora de Deus, que é recebida pela fé em Cristo Jesus. Quem sabe, você pode ser mais um “João”, que nas mãos de Deus proporcionará a muitos o privilégio de ler a Bíblia em sua própria língua materna.

Meu desejo é que a sua oração seja como a minha: Senhor, também quero ser um “João”!

 

Marcelo Carvalho

 

 

Fontes:

Sociedade Bíblica de Portugal, Deus, o Homem e a Bíblia (Lisboa: SBP, 1993, 2ª edição).

César, Élben Lenz Historia da Evangelização do Brasil (Viçosa: Ultimato, 2000), pp. 68-71.

Schalkwijk, Frans L. Igreja e Estado no Brasil Holandês, 1630-1654. (São Paulo: Vida Nova, 1989, 2ª ed.), pp.15,143,146, 234-6,242.

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